Literatura no Sertão: a poética do colonialismo e do culto à personalidade
Josessandro Andrade (*) |
O colonialismo
foi implantado no Brasil em 1500, com a chegada da esquadra de Cabral, que para
promover a extração das riquezas naturais, explorava a boa fé dos índios
nativos, que deslumbrados com as novidades que eram os homens brancos
portugueses, na sua inocência chegavam a trocar pedras preciosas por espelhos.
Desta forma o homem indígena valorizava o que vinha de fora, desprezando o que
tinha de mais valioso, de mais genuíno e que era seu.
Dentro do pacto
colonial firmado entre a coroa portuguesa e a igreja católica ficara acordado
que ao império português cabia desenvolver a exploração de mão-de-obra escrava
dos índios para extração de produtos naturais, contando com a colaboração do
clero católico no sentido de domesticar os nativos , que em troca teria a
oportunidade de conquistar entre os índios, novos seguidores para sua religião.
Uma mão lavando a outra.
Os indígenas
foram perdendo a sua identidade cultural, na medida em que a Companhia de
Jesus,que chegara ao Brasil , iniciara um processo de cooptação dos índios,
utilizando a literatura como instrumento de catequese. Os Padres Jesuítas
estudaram a língua Guarani e organizaram uma gramática desse idioma. Passaram a
encenar peças teatrais sacras e a recitarem poemas religiosos para os nativos,
a princípio na língua dos índios para comunicarem melhor. Quando perceberam que
seus textos já estabelecem uma dominação ideológica sobre o pensamento dos tupi-guaranis,
posteriormente, os textos passam a ser falados em língua portuguesa.
Nunca a força
literária da palavra fora tão evidente num processo de Colonização cultural
como este. Não é toa que numa peça teatral de José de Anchieta , tudo
relacionado ao diabo pertence ao índio e tudo aquilo que se refere aos anjos
está ligado ao português. Os índios desta forma vão perdendo sua língua, sua
religião e vão perdendo toda uma cultura, seus cantos, versos, pinturas e
danças, aderindo a cultura do branco, o que vai ser decisivo no seu processo de
aniquilamento cultural e no seu extermínio como povo, que vem tendo efeitos até
hoje.
Dos milhões que
haviam no Brasil no período quinhentista restam poucos milhares nos dias
atuais. Obviamente que nenhum povo, cultura ou literatura esta livre de
influências externas. Elas são inclusive benéficas, desde que não sejam
impostas ou esmaguem a cultura da terra. Na antropofagia de Oswald de Andrade,
o Movimento Modernista argumenta que deve-se digerir aquilo vier de fora e
servir como elemento de influência, para alimentar a sua obra. Ele defendia
aquilo que chamou de “devoração cultural das técnicas importadas para
reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em produto de exportação".
O escritor e
teórico modernista dá assim um teor metafórico a palavra “Antropofagia”,
encarada por ele como a deglutição do outro externo, como a influência dos
Estados Unidos e da Europa, bem como a do outro interno, como a influência dos
índios nativos e dos negros africanos, ambos incorporados a paisagem social
brasileira. E construir assim uma estética top de linha, tipo exportação.
Por outro lado,
é inegável aquilo que Bakthin observa no seu dialogismo, ou seja a polifonia
dos textos, onde uns e outros dialogam e se influenciam. Inicialmente podemos
concluir que a literatura tem esta possibilidade de reafirmar ou não a
identidade de um povo ou então de estabelecer o domínio de uma nação ou de uma
região sobre a outra. Nunca é demais lembrar a afirmação critica de Bakthin, de
que “Lingua é poder”. O poder de dominar ou a aceitação de um poder para ser
dominado.
Quem se organiza
culturalmente e desenvolve uma articulação literária será capaz de se impor e
construir um projeto poético ou prosador próprio, suficiente para defender a
sobrevivência e o fortalecimento de sua identidade cultural. Para o estudioso
Antônio Cândido, as condições necessárias para que se tenha uma literatura de
um povo, de uma região ou de uma sociedade são a existência de escritores
escrevendo e publicando, uma crítica especializada que estude e discuta esta
produção e um público leitor que consuma as obras. Estabelecendo-se desta
forma, um povo adquire sua autonomia cultural e personalidade artística.
Há uma relação
muito próxima entre colonização e dominação e por consequência, o culto à
personalidade do colonizador, do dominador. Culto a personalidade este exercido
pelo colonizado, pelo dominado.O culto a personalidade é uma ação que visa
exaltar de forma exagerada as virtudes de algo ou de alguém, divulgando–as de
forma exageradamente positivista. Assemelha-se à apoteose, que consiste em
elevar alguém a condição de Deus, de divindade. Esta estratégia é utilizada em
muitas ditaduras, mas também em alguns regimes da democracia.
O culto a
personalidade retira do cidadão a sua condição de sujeito pensante e reflexivo,
uma vez que coloca-o cultuado acima de tudo e de todos os demais mortais, como
ser inquestionável, o que contribui para instalação da burrice. Na literatura,
o culto a personalidade se faz presente nas academias, nas associações, na
imprensa, nas universidades e no meio literário, através das igrejinhas que se
criam privilegiando uma meia dúzia de escritores e críticos.
Os exaltados são
sempre os mesmos, ícones que são sacralizados e considerados perfeitos. Temos
observado em nossa região sertaneja elementos que nos levam a identificar
características de colonialismo literário e do que chamamos de poética do culto
à personalidade. Para esta mentalidade e esta prática, a poesia é um privilégio
de determinadas terras , clãs e regiões, de determinados ícones, como se a
prática do verso e da prosa fosse verdadeira capitania hereditária. Embora
saibamos que algumas regiões possam ter uma tendência maior que outras à
prática da literatura poética ou prosadora, isso não quer dizer que as outras
não possam ter sua produção.
Embora
compreendemos que a literatura e sua elaboração também atende a tendências
genéticas, acreditamos que, aliado a tudo isto e talvez, o fundamental é o
incentivo, o ambiente e um esforço, fruto de um interesse coletivo e pessoal,
pois literatura não é só inspiração, mas sobretudo lapidação, trabalho e
depuração do texto, escrevendo, refazendo, relendo várias vezes até esgotar a
possibilidade de reescrita, e ao longo do tempo melhorando cada vez mais a
capacidade de produzir.
Obviamente
associado a desenvolvimento de uma boa leitura. A expedição de outro
modernista, Mário de Andrade, que esteve no Sertão do Moxotó por volta de 1917,
já catalogava aqui sons e cantos genuínos dessa região, como o aboio e o samba
de coco. A cidade de Arcoverde foi palco desse registro. De lá prá cá ,
Arcoverde com o seu samba de coco e sua música vem somando este cabedal aos
talentos literários típicos da pluralidade característica do Moxotó como
Micheliny Veruscki, Carlos Alberto Cavalcanti, Eraldo Galindo, além dos poetas
frequentadores da Bodega da poesia, reduto da poética popular do bairro do São
Cristovão, como Irason Bezerra , Rômulo Campos, Leandro Vaz, Micheline e Túlio
Araujo, (sem esquecer do Grande Bardo Givaldo Rodrigues),no sentido de
oportunizar espaços de expressão estética aos habitantes desta microrregião.
Vale salientar
que temos em outra cidade do Sertão do Moxotó, Sertânia, uma forte produção
literária e poética, o que leva alguns a classificá-la como berço de
escritores, "Cidade de Poetas". Observe ainda que usamos a preposição
“de” e não “dos”, pois entende-se aqui que prática poético-literária não é uma
exclusividade ou monopólio de quem quer que seja. Por onde passamos, ministrando
a oficina “Viagem a uma Cidade de Poetas”, (inclusive recentemente na UEPB -
Universidade Estadual da Paraíba),temos dito que toda cidade pode ser “uma
Cidade de Poetas”, pois não existe “a Cidade dos Poetas”.
Isto quer dizer
que desde que surgiu no mundo grego, a poesia espalhou-se pelo mundo e não é
propriedade exclusiva de nenhum povo ou nação. Que cada ser humano pode ser um
poeta, que poeta não é apenas quem escreve, mas também que tem sensibilidade
para compreender, sentir e admirar a poesia. Pedimos aqui licença ao poeta
Pedro Américo para dizer que Sertânia é uma “República de Poesia”, onde
convivem todas as formas de produção poética, já que todas elas são válidas e
encantadoras, desde a toada boca de grota, a literatura de cordel, aos sonetos
, trovas e versos livres.
Nossa matriz
literária é abrangente e múltipla , uma fertilidade que acolhe e dá aconchego
as mais diversas linguagens. Desta maneira, nossa concepção de poesia é
generosa, a achamos tão necessária como uma demanda básica. Ela é uma ferramenta
importante no processo de construção da felicidade humana. A Poesia é como uma
orquestra sinfônica que deslumbra. Quantas depressões, quantos cânceres,
quantos AVC’s podem ser evitados com a magia terapêutica da poesia... Isto pode
ser testemunhado pelo o que observou Antonio Andrade Leal (Professor
Universitário, pesquisador- Vitória da Conquista-BA): “No Sertão do Moxotó
avistei uma cidade, suas ruas, suas praça exalavam poesia. Nas minhas batidas
de pernas pelo mundo afora, Sertânia me impressionou pela sua
representatividade em se falando de cultura popular. Pequena em território mas
grande em poesia, viva Sertânia!! ”.
Por tudo isto
não podemos aceitar que queiram nos colocar como satélites poéticos de outras
cidades ou regiões. Esta subserviência literária que nos coloca como plateia e
não como protagonistas poético-literários só serve a interesses pessoais de
grupos, que por intermédio da postura colonializada e do culto à personalidade
de outras regiões, tentam através da imitação dos ícones e fórmulas alheias,
pegar um atalho na história dos outros, sem ter um projeto literário próprio.
Com sabemos a
cópia pouco valor tem, mas apenas o que é original , diferente e raro. O culto
a personalidade de outras paragens revela falta de identidade cultural, a busca
desenfreada pelo sucesso, suplicando a aceitação dos cultuados para obter um
aval num supostamente seleto clube do amém. Pela ótica decorrente disso ai, por
exemplo, o conceito de “fenômeno” não pode estar associado a preferência geográfica.
Se um poeta é de casa, por mais brilhante que seja não pode ser considerado
fenômeno... Mas, Se um que habitar no planeta sideral da poesia, há de ser
classificado como “fenomenal”... Esta falta de critérios e de coerência no
julgamentos de valor é típica do colonialismo literário e do culto a
personalidade, que não obedece a padrões justos, fixos e imparciais, mas a
preferências e ligações pessoais dos esquemas frutos do colonialismo e do culto
a personalidade.
Para tanto,
precisamos fazer aquilo que já nos foi apontado: a luta e defesa dos nossos
poetas e escritores. Uma terra que tem Mestres da poesia como Ulysses Lins,”O
Trovador do Moxotó”, Waldemar Cordeiro “O Gênio do Lirismo”, Alcides Lopes de
Siqueira, “O Menestrel do Sertão", bem como poetas do calibre de Corsino
de Brito, Mozart Lopes de Siqueira, Hamilton Rodrigues, Marcos Cordeiro, José
Carneiro, Adilson Freire, Carlos Celso, Ésio Rafael, Anacleto Carvalho, Alberto
Oliveira, Antônio Belo, Padre Airton Freire, Luiz Carlos Monteiro, Wilson Freire,
Jairo Araújo, Walmar, Josimar Matos, Zito Jr, Flávio Magalhães, Genival
Pereira(Gato Novo), Luiz Freire, Inácio Siqueira, Luiz Wilson, Antônio Amaral,
Duval Brito, Lailton Araujo, André Pinheiro, Kalu Vital, Adilson Medeiros,Liu
Pinheiro, Rosa Ignez, Theresinha Lins, Ada Siqueira, Elisa Freire, Maria do
Carmo Sampaio, Eliane Freire, Suzana Vasconcelos, Vanuza Silva, Adriana Neves,
Bruna Ranyere, Ismênia Thereza, e tantos outros mais não precisa cultuar quem
já tem seu próprio e justo prestigio.
Por mais
respeito e admiração que possamos ter por poetas de outras cidades não podemos
jamais substituir os nossos, que não ficam a dever a nenhuma cidade, posto que
já representam a característica, a história e o jeito de ser de um povo. Os
nossos vates não são melhores nem piores do que os outros. São diferentes e
únicos e como tais devem ser valorizados porque são maravilhosos e porque
constituem nossa identidade. E também porque já desfrutam do reconhecimento lá
fora, faltando aqui o devido registro de seu potencial.
A não ser que
queiramos assinar atestado de “colonizados”, promovendo culto à personalidade
de outros lugares, permanecendo na zona de conforto do fácil, do que já é
aceito, do que é estabelecido, imitando e copiando, exaltando e cultuando quem
já tem o seu sucesso e não necessita mais deste culto à personalidade.Isso não
quer dizer de maneira nenhuma que teremos uma postura de xenofobia, de nos
fecharmos ao que nos vem de fora, mas de valorizar, de reforçar o nosso, para
que possamos dialogar em pé de igualdade com as influências externas que nos
agradem.
Neste sentido,
convém lutar para que esta valorização não se restrinja ao meio literário. Ela
deve ser levada às escolas, à imprensa, à sociedade como um todo. Deve ser
apoiada pelo poder público e pelo setor privado, criando uma identidade da
cidade intimamente ligada a isso. Envolver toda a cidade, inclusive a zona
rural e a periferia. O Moxotó, como Sertão de mil veredas terá assim uma ação
pioneira e de vanguarda , que o colocará como Nação altiva, autônoma e sábia.
Pressupostos para seu desenvolvimento como sociedade civilizada e sensível.
(*) Josessandro
Andrade é professor licenciado em Letras, com pós-graduação em Língua
Portuguesa,. Desenvolve ainda atividades de Poeta, Compositor , Autor Teatral e
Cordelista. Vencedor do Prêmio Nacional Viva a Leitura, do Ministério da
Educação e do Ministério da Cultura.
foto: Sertânia Vip
foto: Sertânia Vip
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